terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pensar em ti é… ternura.






Foto: Regina Meireles Guimarães
                                                                                                                                 









Eu queria fazer magia com as palavras que tanto amo,
Mas não consigo que elas contem o tanto que sentimos.
Os momentos belos, oh, tão belos, que vivemos…
Festas, danças, que nos entreteceram…
Toques, abraços, que nos enlouqueceram.

Sou pequena, sim…
Um grão de areia, na praia da nossa emoção.

Queria fazer um livro do meu, do teu amor.
Do nosso amor, do nosso jeito…
Só nosso, de mais ninguém!
Mas se alguém o lesse que sentisse 
Um átomo que fosse do sol que foi nosso.

A história, nossa, que vivemos
Vai ser sal, mel e calor nos dias que hão-de vir,
Porque para sempre serão luz nos nossos corpos.

Os dedos entrelaçados… as mãos, sedentas de carinho,
Os abraços bem apertados. Foram nossos, meu amor…
(deixa-me chamar-te, ainda, de meu amor)
Serão sempre, porque as memórias nossas, meu amor…
Ah, essas, ninguém, ela, ele, venham quantas, quantos forem,
Ninguém! as arrancará de nós…   
Ficarão na nossa pele, no nosso sentir,
Hoje e em todas as madrugadas e noites que hão-de vir!

Temos a nossa estrela lá no céu.
Temos a nossa lua,
Temos o nosso sol.

Saudade… nostalgia… talvez sim!
Talvez fado, destino ou sina.
Mas tu foste a luz que me fez renascer.
E eu o brilho que te fez enternecer.

… queria eu verter em versos
O livro do nosso amor…
Saiu assim… 

 (sou pequena como uma letra vertida na imensidão da beleza de um poema de amor)

Mas pensar em ti… é ternura.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A última flor do Lácio




Vale a pena pensar nisto. Eu não me revejo a escrever pela nova ortografia. Simplesmente, não consigo e dói-me hoje ler os jornais e revistas, é uma verdadeira manta de retalhos, ver a língua portuguesa completamente sem rumo. Por imposição editorial muda-se para a nova ortografia, mas depois aparecem as excepções, “por decisão do autor”.            

Se o português já era maltratado por todos nós (sim, porque escrever bem português tem que se lhe diga, a maior parte das pessoas pensa que sabe escrever, mas na realidade quase todos damos erros de português, gramática, semântica, sintaxe), hoje é uma balbúrdia, cada um escreve à sua maneira, numa mistura que não é coisa nenhuma.             

Vejo textos escritos sob o novo acordo, em que apenas suprimem as consoantes mudas. Mas esquecem-se que essas mesmas consoantes mudas caem porque a etimologia assim o exige, mas noutros casos a etimologia pesa mais e então já não caem, outras vezes depende da palavra… Confusos? Também eu.

E depois existem as imposições. E as excepções. E anda a nossa língua, o nosso maior património, a nossa identidade mais profunda, aos trambolhões por esses escritos adentro, como se de um fardo se tratasse, uma coisa a mais, um transtorno a ser resolvido de qualquer forma.
Ainda por cima, o meu Word mudou para a nova ortografia sem perguntar se eu autorizava. Simplesmente, numa actualização automática, eis que impera a vontade de um responsável qualquer por um programa que eu paguei e em que supostamente teria algum direito de opção.

Por tudo isto tenho uma declaração a fazer e que é esta:
Língua portuguesa, minha pátria, por teu respeito, declaro que continuarei a amar-te, respeitar-te e a ser-te fiel, na medida das minhas possibilidades e saber.
Continuarei a louvar-te, última flor do Lácio, como Olavo Bilac, poeta brasileiro, tão sentidamente a intitulou num poema justamente chamado Língua Portuguesa. Lacio é uma cidade italiana, de nome original Latium, e onde primitivamente era falado o latim. A língua portuguesa foi a última língua a derivar do latim, sendo as outras o francês, espanhol, italiano e romeno.

Do mesmo poema deixo-vos estas breves estrofes:

“Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!”





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domingo, 15 de julho de 2012

Não te quero mais







Amo-te. Amo-te tanto! Mas não consigo viver assim. Com uma pedra no peito. É uma ansiedade que faz mal. Perturba. Faz mal. Muito.
Amo-te. Como te queria dizer isto alto e bom som. Mas não posso. Por isso prefiro calar-me. E arrumar este sentimento de uma vez por todas. Vou amordaçá-lo, abafá-lo, matá-lo. Definitivamente. Todos os dias do resto da minha vida até que consiga dizer: não te amo. Já não te amo mais.
Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida em que vou repetir até à exaustão: não te quero amar mais. 
Não quero nada mesmo!

Fazes-me chorar… não quero amar-te. Podia ter sido tudo tão mais simples….
Mas não, saiu tudo como não devia… fazes-me chorar e sofrer. Amargamente, arrependo-me de te ter amado, pertencido, esperado…
Hoje pensei… hoje pensei mesmo… que ia encontrar-te. Pus-me linda, só para ti. Sim, era imaginação, mas pus-me linda como se fosse estar contigo. Queria tanto ver-te, passar a minha mão pelo teu rosto, sentir a tua mão a despertar festas na minha…
 Mas tu não quiseste. Sim, não quiseste. Porque se quisesses, já me amavas plenamente.

Repito-te as palavras de Baudelaire:
 Os bosques para mim são como catedrais,
Com órgãos a ulular, incutindo pavor...
E os nossos corações, - jazidas sepulcrais,
De profundis também soluçam, n'um clamor.

Dizes que me amas, sim. Que tens saudades. Que te faz falta ouvir a minha voz.
Pois eu não te quero mais! Não vou dizer que te amo, não! Não vou ficar aqui à tua espera, como tu queres…. Quem espera aflige, desalenta, sabes? E eu estou farta de cobardias, estou farta do silêncio do nosso amor. O amor tem de se gritar, ser ouvido, sentido, vivido…

Não quero mais amar-te, sabes? Não, não sabes. Mas vais saber. Não te vou dizer. Mas tu vais saber. Cansei. Estou farta. De silêncios.
Não quero amar-te, não quero mais. E sabes que mais? Apetece-me amar, sim! Mas não a ti! Não a ti!
E, sim, vou repetir: não te quero amar mais, não quero, não quero!

Tu não compreendes que nós dois somos duas frases do mesmo verso, duas estrofes do mesmo poema?
Ego amo te.


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quinta-feira, 10 de maio de 2012

Regresso ao interior


O impulso que me fez transpor a barreira do tempo da minha inquietação ainda estou para descobrir. Lembras-te? Não sei se algum dia regressas, regressaste, regressarás… Mas os caminhos que um dia percorri hoje raiaram como um nascer do sol.

Uma brisa. Um barco no horizonte. Uma gota de chuva.
Um voo. O silêncio de uma melodia. Shiuu…

Sim, nasci na Serra, envolto em amendoeiras por florir. Havia um perfume no ar, um cheiro a terra humedecida pelos borrifos da cacimba, a que se adicionaram lágrimas de contentamento.
Por aí voltei, pela quentura dos Verões – e não te encontrei. Só me lembro dos campos, da ceifa, de uma noite a dormir ao luar na eira… Mas tu não estavas lá.

Também te não vi ao instalar-me junto à costa, cheiro a maresia, arrulhar bonito das ondas umas a beijar as outras. Os beijos não eram meus. Os barcos que, sentado no areal, via passar ao longe, pontos negros de uma rota para mim inteiramente desconhecida, também só me faziam sonhar… Eras, vagamente, de longos cabelos lisos a emoldurarem-te o rosto, olhos castanho-escuros, meigos, naquele enorme desejo de partilha…
Longa foi a travessia do deserto – porque, embora litoral, nada havia tão quente e fecundo e terno como o interior. O interior nosso. O interior de um país por explorar. Regressei. Foi aí, afinal, que ora te descobri.
E há um sol escondido neste céu bem cinzento; mas eu sei que ele está lá, pronto a aquecer. A aquecer-nos!

Ouves? Escuta a suave brisa que refresca os meus cabelos. Baila na minha cabeça a música do nosso sentir, aquele sentir que nos atraía irremediavelmente para os nossos braços, oh, os nossos abraços... Lembras-te? Os teus braços eram meus, os meus teus, a minha cabeça no teu ombro sonhava, voava, a tua no meu embriagada na minha pele, os meus braços enrolados no teu corpo apertavam, apertavam… Os teus, qual corrente macia, aprisionavam-me numa doçura sem fim e assim, só assim, ficávamos segundos, minutos, tempos sem fim... No interior nosso. Tão nosso.

Nunca te disse, mas vou dizer-to agora. A vida que vivemos, o tempo que partilhamos, as emoções que experimentamos não é passado, nunca. O nosso tempo é um verbo que eu conjugo no presente e no futuro, porque é a taça que o meu coração ergue, glória merecida, porque não esquecida.
Não, não fiquei triste quando partimos. Por isso não te esqueci. Por isso, neste relembrar das árvores da serra, do mar que foi nosso, tu estás lá, eu estou lá. Existimos sem esforço, eu e tu somos a seiva que dá vida, a força que anima as ondas do mar, as gotas de chuva que lavam os chãos, o vento e o sol. Sim, partimos, mas ficou o nosso sentir a fecundar este lugar onde fomos tão felizes, a impulsionar as correntes das águas que correm loucas, quão louco era o nosso amor, doces, tão doces quanto a ternura infinita com que apertávamos as mãos, sempre entrelaçadas, porque enredadas num infinito bem-querer.

Os teus cabelos morenos, que eu percorria lentamente entre os meus dedos, hoje estarão grisalhos. Os teus olhos esverdeados de fundo de mar, que se fundiam no castanho das minhas pupilas, qual espelho da minha alma, hoje estarão cansados. Eu já não tenho o fulgor que te enlouquecia e enternecia, mas – sabes? – Sinto-te perto. Este sol que ora me afaga é o mesmo que um dia nos aqueceu. Estás aí, meu amor?
E cavalga no vento essa pergunta, que é estranha. Ou, afinal, o não será, porque de partidas e regressos se entreteceram nossas vidas, pelas paisagens que juntos palmilhámos… Alentejo multicolor num Abril florido, Algarves quentes, Trás-os-Montes agreste e frio…

Estou aqui, claro!
Caminhadas que fizemos – e que ora, tantos anos passados, apetece de novo fazer, acariciando-te também eu os longos cabelos pretos!... Vamos viver outra vez! Agarrando sofregamente cada minuto. Não, não queremos olhar para o relógio – que, desta feita, não há relógios para nós, não há pressas, e o melro, ali, saúda o amanhecer, num chilreio, e eu quero voltar a amanhecer sempre contigo!...

Anabela Guimarães
José D’Encarnação


Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

PARA TI...

Só porque se quer, só porque sim, apenas porque se deseja. “Só porque o coração pode falar não há necessidade de preparar o discurso”, confidencia-nos Gotthold Lessing. A emoção florida de um sentir, as mãos mágicas de um sonho que se quer celebrar, o suspiro profundo de um querer reflectido na ternura de um olhar. Ó amor meu que me sentiste, para ti o meu voo, para ti o meu mundo.

Para ti
 
Dispersam-se os segundos.
E eu ouço o sol, as nuvens e o perfume do dia.
Sinto o verde das árvores e o aroma das flores.
Tacteio o cinzento das calçadas e o barulho das ruas.

Adivinho a altura da ausência,
Penso na verdade da lua.

Para ti,
Voo no rebuliço do silêncio e
Sossego nas tempestades que me incendeiam.

Por ti,

Os meus olhos adivinham os teus murmúrios,
Os meus ouvidos roçam a tua loucura,
A minha boca escuta – momentos.

Lá vai o raio de sol.
Para ti, porque lhe pedi,
Leva a tranquilidade do meu sorriso,
E a doçura de um sentir. 

Anabela G.
Publicado in Jornal Renascimento

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Feixe em mim...

Porque às vezes apetece, porque escrever é um acto intimista, sempre, porque arrumar palavras é uma emoção e porque somos um cadinho de intempéries e calmarias, onde por vezes faz sol, ou simplesmente o lado lunar nos inunda. São momentos, são sensações, são feixes de vida. Ou, porque, citando Florbela Espanca, é ser(es) alma, e sangue, e vida em mim




 


Feixe em mim


Este feixe que me aperta o peito
Esmaga-me, tortura-me, trucida-me.
Esta dor que não tem nome
E não posso partilhar.

Sou flor pisada, caída no chão.
Nervo que se torce, ferida que não se vê.
É sangue, é dor, é ferida em mim.

Prendo um murmúrio que se queria grito,
Lágrima amarga que não escorre.
Levo um constrangimento que me algema,
Encarcera e angustia.

Vou no sentido oposto,
Passo ao lado do sul.
Palmilho terras sem nome.

E em mim
Sentimento ofendido.

Anabela G.

publicado in Jornal Renascimento

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Mentira, mentira, mentira...

Óleo sobre tela de René Magritte

Tu julgas que eu não sei que tu me mentes 
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?

Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito...

Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!


Florbela Espanca

Gostar de alguém pode ser tão forte que dizer a verdade pode ser cruel? Ou, por outras palavras: gostamos tanto de alguém que o que temos a dizer soa a crueldade e então vamos lá conceber uma forma em que as palavras têm de ser medidas, pensadas, adocicadas… para não magoar. Só que às vezes esse esforço é tanto que essas mesmas palavras soam a isso mesmo: mentira, mentira, mentira.
Sim, mentira. Essa palavra que queima, esturra, seca. Ou não. Quem não disse uma mentira que se levante sff.  A mentira dita social é aceite pela sociedade, dita todos os dias. Mente-se, pois, aqui e acolá. Mas é mentira quando se diz a verdade em palavras travestidas, mais ou menos brandas? Será uma mentira que poderá afinal de contas não o ser, mas então é o quê?
Há as pessoas que mentem porque têm uma extrema necessidade de serem amadas, apreciadas, ou elogiadas, e mentem para se sentirem aceites, mentem para serem mimadas, mentem para os outros e para si próprios.
Hannah Arendt dizia que é muito difícil mentir aos outros sem mentirmos a nós mesmos.  Em Hípias Menor, Sócrates trava um diálogo com Hípias, um sofista que conhece todas as ciências, um sábio, enfim. Este diz que um homem que não mente e um que engana são, no fundo, semelhantes. O que engana é um homem inteligente porque o faz conscientemente, ou seja é consciente da verdade, assim como aquele que não engana. São os dois válidos, ou seja, aqui está uma bela maneira de chegar a um fim sem olhar a meios…
Kant, por seu lado, acreditava que a mais leve mentira era um mal contra todos os homens. Já Santo Agostinho, posicionando-se num plano moral, acusava que mentir era um pecado grave.
E Florbela Espanca fingia-se enganada, porque o seu amor lhe mentia. E outros dizem que Pessoa mentia quando dizia que fingia tão completamente que fingia que é dor a dor que deveras sente.
Li algures que a melhor pessoa diz a verdade como quem mente. E o melhor mentiroso mente como quem diz a verdade. Será verdade?
Mas verdade, verdade, é a de Epicteto: “A verdade triunfa por si mesma. A mentira necessita sempre de cumplicidade”.

Anabela G.
Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O verdadeiro amor, segundo Wislawa Szymborska

Há verdadeiros momentos de magia. Por exemplo, quando descobrimos palavras que nos iluminam a alma. Como este poema, O verdadeiro amor segundo Wislawa Szymborska, Nobel de Literatura em 1996.

Não resisto a partilhar convosco.

O verdadeiro amor. É normal, é sério, é prático?
O que é que o mundo ganha com duas pessoas que vivem num mundo delas próprias?

Colocadas no mesmo pedestal sem mérito nenhum, extraídas ao acaso entre milhões, mas convencidas que era assim que tinha de ser - em prémio de quê? De nada.
A luz desce de qualquer lado.
Porquê nestas duas e não noutras?
Não é isto uma injustiça? É sim.
Não é contra os princípios estabelecidos com diligência e derruba a moral no seu cume? Sim, as duas coisas.

Olha para este casal feliz.
Não podiam ao menos tentar esconder-se, fingindo um pouco de melancolia, por cortesia com os seus amigos?
Ouçam como riem - é um insulto a linguagem que usam - ilusoriamente clara.
E aquelas pequenas celebrações, rituais, as mútuas rotinas elaboradas - parece mesmo um acordo feito nas costas da humanidade.

É difícil prever a que ponto as coisas chegariam se as pessoas começassem a seguir o seu exemplo.
O que aconteceria à religião e à poesia?
O que seria recordado? Ou renunciado?
Quem quereria ficar dentro dos limites?

O verdadeiro amor. É mesmo necessário?
O tacto e o silêncio aconselham-nos a passar por cima dele em silêncio, como sobre um escândalo na alta roda da vida.
Crianças absolutamente maravilhosas nasceram sem a sua ajuda.
E ele chega tão raramente que nem num milhão de anos conseguiriam povoar o planeta.

Deixem que as pessoas que nunca encontraram o verdadeiro amor continuem a dizer que tal coisa não existe.

Com essa fé será mais fácil para eles viver e morrer.

Ficaram maravilhados como eu? Aqui está uma bela maneira de começar o ano. Quando se fica de alma cheia com um verdadeiro amor. Pelo sentimento. E pelas belas, perfeitas, palavras deste poema cheio de graça e génio…

Anabela G.
Publicado in Jornal Renascimento

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Os enigmas de Wittgenstein II - O mundo é tudo, a questão é essa…

Continuando com a conversa anterior sobre Ludwig Wittgenstein. Não esqueçamos que existiram duas fases diferentes na vida do pensador. Uma resultou na publicação de Tractatus Logico-Philosophicus, o seu primeiro livro, e outra, bem diferente, relatada em Investigações Filosóficas, publicada postumamente.
Terminámos a conversa anterior com um pensamento do autor sobre a Filosofia: não evoluiu nem um bocadinho desde Platão: “Será que isso se deve à inteligência de Platão”? Será…
E o que será que está por trás de simples palavras, como “este ananás é muito agradável”? O pensamento? E que pensamento subjaz à frase? Imaginamos o sentido do que dizemos como sendo estranho, misterioso, oculto do nosso olhar. Mas nada está escondido. Está tudo à vista! Os filósofos é que turvam as águas…
À primeira vista parece que Wittgenstein odeia a filosofia. Chega a dizer que a Filosofia não explica nada, não resolve qualquer problema do mundo.
Há problemas linguísticos, matemáticos, éticos, logísticos e religiosos, mas não há problemas genuinamente filosóficos. A filosofia é apenas um subproduto de uma incompreensão da linguagem, busca a essência do sentido. E tal coisa não existe, segundo o autor chegou a reflectir. Inútil a Filosofia? Para Wittgenstein era mais uma terapia.
Mais curiosa era a sua visão, segundo a qual a Filosofia era uma alma que estava prisioneira dentro do próprio corpo, sem contacto com os outros devido às barreiras impostas por terceiros. E ele queria libertar-se dessa prisão… porque não há nenhum significado especial. Somos aquilo que somos, porque partilhamos uma linguagem e uma forma de vida comum. Contudo, não deixa de dizer que, importante na Filosofia, é aquilo que ela pode questionar, articular, posição completamente contrária à que tinha defendido na sua “primeira” filosofia em Tractatus Logico-Philosophicus.
Muito mais há para dizer sobre Wittgenstein. Por isso aguardamos ansiosamente o resultado das investigações sobre a recente descoberta de um espólio em casa de um dos seus alunos. A sua forma de fazer filosofia, se assim lhe podemos chamar, cativa, não só devido às questões que levanta, mas, porque partilha connosco de um modo muito próximo as suas inquietações. Com ele partilhamos um mundo inquietante onde o enigmático, a dúvida, se misturam com o conhecimento. Porque ele próprio proclama que sem dúvida não há conhecimento.
E qual é o autor que não fascina quando afiança que não há enigmas…se algo pode ser equacionado também pode ser respondido?
O mundo é tudo, a questão é essa, diz-nos. E nisso, não ousamos duvidar…

Anabela G.
publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Os enigmas de Wittgenstein – e a descoberta de um tesouro…

Ainda há descobertas que nos entusiasmam…
Foi recentemente encontrado um verdadeiro tesouro, um daqueles achados que podem esclarecer e até modificar o conhecimento que temos de um autor de que julgávamos conhecer as suas ideias. Estou a falar de um dos filósofos do século XX que pessoalmente mais interesse me suscitou, Ludwig Wittgenstein. Poder-se-á dizer que a sua filosofia não foi uma, mas duas, correspondentes às duas únicas obras publicadas, Tractatus Logico-Philosophicus, a única publicada em vida e Investigações Filosóficas, publicada após a sua morte e onde o seu pensamento se radicaliza em ópticas completamente opostas.
Pois foi descoberto um novo espólio em casa de um dos seus alunos, onde permaneceu incógnito até agora, o que nos deixa a esperança de conhecer mais do seu pensamento científico e das suas extraordinárias reflexões.
Não comecei propriamente por compreender Wittgenstein, até que vi um documentário sobre a sua vida, intitulado precisamente Wittgenstein, do realizador Derek Jarman, filme que recomendo vivamente a quem se quiser iniciar no pensamento daquele autor.
Neste documentário o realizador, além de nos permitir espreitar um breve olhar sobre a vida pessoal do filósofo, abre-nos igualmente a porta da sua obra e pensamento e da sua intensa e persistente busca de certezas e respostas, na ciência que apelida de “doença da alma”, a Filosofia. O realizador procura desvendar-nos algo sobre várias vertentes do pensamento de Wittgenstein, nomeadamente a Filosofia, a Linguagem, a Religião e os seus próprios afectos.
Sobre a linguagem acredita o filósofo em Tractatus Logico-Philosophicus que aquela dá-nos a imagem do mundo mas não nos pode dar a imagem de como o faz. Seria como tentarmos ver-nos a observar qualquer coisa! A forma como a linguagem o faz é inexplicável. É esse o mistério. Mas isso estava completamente errado, concluiu mais tarde o segundo Wittgenstein, como muitos autores se referem à segunda parte da sua obra. A linguagem não é uma imagem. É uma ferramenta, um instrumento. Não há apenas uma linguagem no mundo. Há muitos jogos de linguagens diferentes. Diferentes formas de vida e formas de fazer coisas com palavras… não está tudo junto! Afirma: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. (…) Estamos sempre a esbarrar contra as paredes da nossa jaula”.
O autor abandonou a ideia de que a linguagem era uma imagem, porque tal é uma metáfora enganadora. Mala é a imagem de mala… mas e “olá” e “talvez”? Que imagem nos ? Continuando a reflectir sobre os limites da linguagem e o que significa comunicar, persuade-nos que o sentido das palavras provém daquilo que fazemos e daquilo que somos. “Não posso perceber a linguagem de um leão pois desconheço o mundo dele. Como posso conhecer o mundo que ele habita? Será por não poder espreitar-lhe a mente”?
Wittgenstein acredita que há a necessidade de dominar um jogo de linguagem. Em cada âmbito de uma certa actividade há palavras com semelhança de família, que é imprescindível dominar. Contudo, o jogo de linguagem pode com o tempo alterar-se, caducar, o que implica uma alteração de vocabulário e também de gramática. E refira-se que gramática para o autor, não é apenas a sintaxe, mas todo o contexto, incluindo as regras do seu uso.
O jogo de linguagem pressupõe igualmente formas de vida. O ser humano tem a capacidade de projectar a sua vida para além do humano e, para Wittgenstein, necessariamente na Arte. Isso implica a capacidade de alargar os nossos horizontes para além do imediato, até porque o ser humano exige Arte. E não é uma opção. É uma necessidade muito humana, porque transmite um sentido de identificação a algo maior, uma excitação que exalta os sentidos e a mente.
Fascinante? Imaginem então o que nos espera quando os investigadores nos esclarecerem sobre as novas reflexões de Wittgenstein, o tal tesouro recentemente achado. Sim, achado… Aqui está uma linguagem que gosto de utilizar….
No próximo artigo falarei sumariamente, como não poderá deixar de ser nestas breves linhas, nas reflexões do autor sobre Religião e Filosofia. Sobre esta dizia o autor que não evoluiu nem um bocadinho desde Platão: “Será que isso se deve à inteligência de Platão”?
E ainda há quem diga que os filósofos não têm humor…

Anabela G.
Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Novo ano, tempo de crise, tempo de ser feliz...

Um novo ano está à porta e aproxima-se a grande velocidade, qual furacão a entrar em nossas casas. E sim, a palavra furacão é uma alusão à incerteza e possíveis dificuldades ainda mais aflitivas que as que este ano vivemos.
A incerteza é uma certeza. Imaginamos o que nos espera, mas estaremos preparados para um ano ainda mais difícil? Porque as dificuldades que se avizinham serão ainda maiores e mais sentidas se não estivermos preparados para as receber e vivê-las de forma a não nos destruirmos e destruirmos o outro, os outros, os alguéns, os que não vemos e os que vivem ao nosso lado.
O começo de um novo ano faz-nos sondar a passagem do tempo na nossa vida. O que acaba, o tempo ou a vida? O tempo é finito, mas a nossa vida pode suportar o tempo e caminhar para além dele.
O que está por vir não é algo predeterminado, mas constrói-se na marcha implacável do tempo. Dentro dele, livremente, vamos ao encontro da felicidade ou da desgraça. Temos a nossa liberdade para decidir o caminho a escolher. Uma liberdade lado a lado com a responsabilidade, porque o caminho mais fácil será culparmos todas as crises e todos os outros pelas dificuldades que advirão. Será nesta liberdade e respeito pelo semelhante que poderemos ter esperança que os problemas poderão ser minorados.
Esta responsabilidade é-nos dada por Dostoievsky: “Somos todos responsáveis por tudo e por todos e eu mais do que qualquer outro e antes de qualquer outro”. Desta maneira, cada um tem de responder sob a injunção do outro, independentemente daquilo que cada qual faça. Ou seja, esta regra é a condição para cada um saber agir por si, sem esperar nada em troca. É saber agir em função da nossa consciência, do reduto último da nossa humanidade; é agir em função do bem para além do Ser. Este é o verdadeiro humanismo: responder em função do apelo do outro sem almejar qualquer recompensa que não a execução do bem pelo bem.
Será o tempo em que teremos de praticar a ética nas nossas vidas em todas as frentes. O habitual é surgir o “eu” que se vai rodeando de diversos predicados, no entanto, a responsabilidade não é uma qualidade do “eu”, é o próprio “eu”. Quem nos ensina isto são os mestres do saber e da filosofia, desde Levinas a Derrida, passando por Ricoeur. E esta é a altura para nos socorrermos dos ensinamentos dos Mestres e dos que dedicaram a vida ao conhecimento, porque com eles estaremos mais preparados para enfrentar as adversidades e o desconhecido. Sem nos recolhermos à nossa concha e apenas olharmos o nosso umbigo. Porque, este sim é o verdadeiro perigo. Ao contemplarmos apenas o nosso eu, desprezamos os outros e secamos as nossas vidas e tudo em volta.
Faço, pois, um desafio a todos vós, a todos nós. Vamos enfrentar um ano difícil, sim. Mas não esqueçamos os valores, não esqueçamos o outro, numa qualquer desculpa da crise e obstáculos que, sim, também, são, serão, muitos.
Vamos ter esperança em nós e nos outros, sem angústias e desalentos. Vamos fazer como Orson Welles: "Mesmo quando não havia nenhuma esperança, sempre procurei dar o melhor de mim."
Bom Ano Novo. E não resisto a citar também António Feio: “Não se esqueçam de ser felizes!”

Anabela G.

Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Um Natal com menos, mas mais Natal…




O Natal, mais uma vez. Todos os dias é Natal, alguém disse, mas em Dezembro, lembramo-nos que realmente é Natal. Todos os anos o Natal é diferente, de uma forma ou de outra, porque cada um tem consigo as marcas do tempo que o sucedeu.
Dizer que este Natal é difícil soa-me a repetição de muitos outros Natais. Os tempos estão difíceis, sim, mas tantos anos houve que eles estavam igualmente difíceis… Este ano está mais? Sim, provavelmente, para mais pessoas, mas em todos os outros Natais as dificuldades acompanharam a vivência de tanta gente! Mas um Natal com menos, pode ser um Natal melhor. Quem o diz é Frei Fernando Ventura, que reflectiu sobre este Natal e do qual vos deixo aqui uma parte da sua reflexão que pode ser lida na íntegra do site da Agência Ecclesia.

"Ser hoje luz num tempo de sombras, parece ser o “destino” de cada um de nós no tempo que passa, num tempo que passa e que dói, que dói esta dor funda da impotência, da impotência diante dos gigantes das sombras que se agigantam e que parecem querer tomar de assalto tudo o que mexe, tudo o que respira e tudo o que sonha. Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor! O mundo, o país e cada um de nós, vive tempos de esperança e de mudança, em que o novo surge como a nova fronteira a conquistar, mas onde o medo e os medos teimam em formar barreira diante dos olhos, destes olhos feitos para ver a luz, feitos para encarar o medo, feitos para não terem de ver o sol só reflectido nos charcos. Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor! Se calhar, a maior conquista do tempo do medo que passa, foi precisamente esta de nos ter tirado a capacidade de ousar levantar a cabeça, de ousar olhar para além do imediato do já, em direcção ao menos “imediato” do ainda não, mas que está e vive em tensão de devir, de futuro, de projecção para diante, num diante que encontra a utopia e faz dela o sonho, um sonho que vence o medo, um sonho que se abre à luz. Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor! É por aqui que passa o segredo, este segredo que invejosamente levamos dentro sem partilhar, que envergonhada e pudicamente escondemos e que não conseguimos dar à luz e que nos faz gemer, gemer as dores do parto que tarda, gritar o grito das vozes caladas. Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor! E no entanto, a gravidez do tempo existe, as dores do parto afligem-nos, o nascimento tarda em acontecer, e o meu povo sofre, e a minha gente grita, o grito surdo que a voz rouca não é capaz de calar, mas que o medo embota, e que o desespero não deixa encontrar a paz (…)”

Esta crise que acompanha o Natal, também é uma crise que nos acompanha dentro de nós mesmos, dentro do nosso nós mais interior, aquele em que gritamos connosco e nos faz pensar e dizer basta tantas vezes. E desta vez também podemos dizer um basta de não saber quem somos, o que fazemos num mundo tão explorado e igualmente manipulador, em que somos arrastados pela torrente avassaladora dos acontecimentos que nos esmagam e fazem doer, porque ao olhar em volta vemos dor e sofrimento no olhar do outro e em nós esta dor é tão, mas tão semelhante, porque a crise começa no meu eu, na minha génese de ser quem sou.
Vamos aceitar o desafio de Frei Fernando Ventura e dizer NATAL, porque é um Natal com menos, mas pode e deve ser um Natal melhor. Vamos olhar para o esplendor do Natal das luzes e decorações douradas e coloridas e interiorizar esta beleza dentro de nós próprios, para que o Natal seja realmente sentido em todos os sentidos, para que possamos sentir um Natal dentro de nós, mas em direcção ao outro, que esquecemos numa lembrança tão ilusoriamente oferecida no nosso mais superficial gesto de dar um presente, não porque é Natal, mas porque é mais um Natal…
Vamos fazer um Natal com menos, mas mais Natal, porque verdadeiramente é Natal lá fora e dentro de nós, hoje e eternamente Natal. Feliz Natal todos os dias! 

Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Feliz Natal a todos...

Feliz Natal a todos os meus amigos e leitores,


Anabela G.

 Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Já não há tempo?

Já não há tempo?

Há dias assim… dias em que nos apetece desligar o interruptor e mergulhar no silêncio, no vazio da nossa alma. Deixar de ouvir os lamentos de todos os dias, as notícias de mais uma catástrofe que deixou seres como nós sem tecto e sem comida, de uma guerra fratricida que assassina vizinhos, amigos e irmãos, de uma crise instalada que nos fulmina todos os dias com mais um caso que nos faz duvidar do dia de amanhã, de uma manhã de trabalho que nos esgotou as forças de um dia inteiro…

Há dias que já não se aguentam. Dias em que não vislumbramos o sol, dias que duvidamos que Deus existe. Dias que em que protestamos vivamente, como Al Berto:  deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.
 É quando perdemos o tempo. Já não sabemos onde está, ou, pior ainda, para que o queremos. Ele escapa-se-nos das mãos. Ouvimos, mas não sentimos. Guerra? É tão lá longe… Crise? Está tão instalada que mais uma notícia é só mais uma notícia. O tempo esgota-se em cada má notícia, os dias esvaiam-se numa sucessão de segundos onde estamos onde não queremos, fazemos o que não projectamos, sentimos o que não desejamos. 
E, num repente, dá-mos connosco a pensar: mas já não há tempo...

— Bom dia - disse o principezinho.
— Bom dia - disse o vendedor.
Era um vendedor de pílulas aperfeiçoadas que acalmam a sede. Toma-se uma por semana e deixa-se de sentir qualquer necessidade de beber.
— Por que é que vendes isso? Perguntou o principezinho.
— É uma grande economia de tempo, disse o vendedor. Os peritos fizeram as contas. Permite poupar cinquenta e três minutos por semana.
— E o que é que se faz com esses cinquenta e três minutos?
— Faz-se aquilo que se quer...
«Eu, disse para si mesmo o principezinho, se tivesse cinquenta e três minutos para gastar, caminharia muito lentamente para uma fonte...»

Saint-Exupéry  tinha tempo. E nós teremos? Eu gostava de ter tempo para me contarem uma história… ouvir uma música dentro do silêncio, ter um sonho nas páginas de um livro… Porque como dizia José Jorge Letria,

Os livros são a metade /Dos sonhos que tu tens,/São a tua liberdade/ E o maior dos teus bens,/Porque tendo a tua idade/Têm tudo o que tu tens.

Anabela G. e http://www.eacfacfil.net/

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Abelaira e Espinosa ou a Pátria dos Imortais…


Augusto Abelaira, escritor, professor, romancista, foi (é) um dos grandes nomes da cultura portuguesa. Na sua vasta obra teve uma especial predilecção pela autocrítica geracional e o próprio acto da escrita, temas a que recorria frequentemente.
Vem isto a propósito de um seu artigo “Nascido em Portugal, Espinosa…”. Encontrei-o no meu “baú” académico e lembro-me de ter debatido, com colegas e professores, se o autor nessa sua reflexão, não teria também uma ponta de melancolia, de desalento até, de nascer português. Não de “ser” português, coisa completa e absolutamente diferente, até porque Augusto Abelaira sempre se pautou por intervir activamente na vida política de Portugal. Senhor de uma ironia profunda participou activamente na cultura e na sociedade portuguesa, não hesitando em envolver-se na altura em que a censura imperava em Portugal.
Mas, voltando ao artigo em questão, Abelaira tece várias considerações sobre a importância (ou a falta dela) de alguns autores célebres nasceram num determinado país. Neste caso concreto, falava de Espinosa e Portugal.  
Será que se Portugal não tivesse expulsado os judeus, Espinosa poderia ter nascido português? E, mesmo assim, quem garante que a família de Espinosa não teria emigrado?
O autor refere que a história humana está repleta de “ses”, reflectindo sobre um certo determinismo muito característico de alguns autores portugueses (da alma portuguesa, diríamos nós), convencidos que Portugal, no seu cantinho do Sul da Europa, tem sempre um papel reduzido no panorama cultural mundial (sim, temos Saramago, para falar apenas de um Nobel, temos já muitos e bons nomes a circular por esse mundo, mas o que poderíamos ter se Portugal não fosse o tal cantinho, o tal “rectangulozinho”?).
Citando Eduardo Lourenço, Espinosa poderia ter escrito a sua Ética em Lisboa ou Coimbra… mas teria ela entrado no grande “diálogo europeu” como aconteceu ou teria antes permanecido confinada à nossa cultura lusa e, assim, sem a projecção que teve na cultura universal? Teria esta que agradecer a tragédia de tanto sangue derramado em Lisboa, para dar à luz um dos grandes racionalistas da filosofia moderna?
Talvez Portugal não reunisse as mesmas condições que Amesterdão proporcionou ao célebre filósofo. Mas, mesmo que reunisse, certamente não seria o mesmo Espinosa… Certamente a sua obra não seria a mesma, o contexto cultural não seria o mesmo, logo a sua Ética não seria a “sua”, mas outra, desenvolvida em contextos diferentes.
Novamente Abelaira recorre na sua reflexão ao fatalismo português. Discorre sobre o individualismo nacional, a falta de diálogo, à quantidade de “Mozarts perdidos” pelo facto de nascerem portugueses… Aqui não estaria o autor a sentir a tal melancolia que falamos há pouco, de nascer em Portugal? Com tantas obras publicadas e o reconhecimento que granjeou, Augusto Abelaira poderia ser conhecido e estudado noutros países, numa outra dimensão, entrado no tal diálogo europeu…. Se (os tais “ses”…) Abelaira tivesse nascido em Amesterdão teria a projecção mundial que certamente almejaria, ou seria, como em Portugal, um escritor premiado e reconhecido nacionalmente, mas apenas e só a nível nacional?
Não saberemos nunca, mas este pensamento determinista, fatalista, de impossibilidade de lutar contra acontecimentos que impedem a liberdade de vida e tolhem a liberdade de movimentos é característica de outros escritores portugueses como Eça, Antero ou Pessoa.
Será que Abelaira não escapou a este estado de alma tão típico de Portugal? Não somos capazes de responder, mas acreditamos que Abelaira subscreveria a afirmação de Alfred de Musset: “Os grandes artistas não têm pátria”.  
E arriscamos a perguntar: a pátria dos filósofos, poetas e escritores não será os seus livros, as suas palavras?

P.S.: Vivemos presentemente uma situação nacional tão crítica  que cada vez mais estamos convictos que Portugal não mudou tanto assim… E ainda por cima continuamos “sebastianistas”… até quando?

Anabela G.
Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/