O impulso que me fez transpor a
barreira do tempo da minha inquietação ainda estou para descobrir. Lembras-te?
Não sei se algum dia regressas, regressaste, regressarás… Mas os caminhos que
um dia percorri hoje raiaram como um nascer do sol.
Uma brisa. Um barco no horizonte. Uma gota de chuva.
Um voo. O silêncio de uma melodia. Shiuu…
Sim, nasci na Serra, envolto em
amendoeiras por florir. Havia um perfume no ar, um cheiro a terra humedecida
pelos borrifos da cacimba, a que se adicionaram lágrimas de contentamento.
Por aí voltei, pela quentura
dos Verões – e não te encontrei. Só me lembro dos campos, da ceifa, de uma
noite a dormir ao luar na eira… Mas tu não estavas lá.
Também te não vi ao instalar-me
junto à costa, cheiro a maresia, arrulhar bonito das ondas umas a beijar as
outras. Os beijos não eram meus. Os barcos que, sentado no areal, via passar ao
longe, pontos negros de uma rota para mim inteiramente desconhecida, também só
me faziam sonhar… Eras, vagamente, de longos cabelos lisos a emoldurarem-te o
rosto, olhos castanho-escuros, meigos, naquele enorme desejo de partilha…
Longa foi a travessia do
deserto – porque, embora litoral, nada havia tão quente e fecundo e terno como
o interior. O interior nosso. O interior de um país por explorar. Regressei.
Foi aí, afinal, que ora te descobri.
E há um sol escondido neste céu
bem cinzento; mas eu sei que ele está lá, pronto a aquecer. A aquecer-nos!
Ouves? Escuta a suave brisa que
refresca os meus cabelos. Baila na minha cabeça a música do nosso sentir,
aquele sentir que nos atraía irremediavelmente para os nossos braços, oh, os
nossos abraços... Lembras-te? Os teus braços eram meus, os meus teus, a minha
cabeça no teu ombro sonhava, voava, a tua no meu embriagada na minha pele, os
meus braços enrolados no teu corpo apertavam, apertavam… Os teus, qual corrente
macia, aprisionavam-me numa doçura sem fim e assim, só assim, ficávamos
segundos, minutos, tempos sem fim... No interior nosso. Tão nosso.
Nunca te disse, mas vou
dizer-to agora. A vida que vivemos, o tempo que partilhamos, as emoções que
experimentamos não é passado, nunca. O nosso tempo é um verbo que eu conjugo no
presente e no futuro, porque é a taça que o meu coração ergue, glória merecida,
porque não esquecida.
Não, não fiquei triste quando
partimos. Por isso não te esqueci. Por isso, neste relembrar das árvores da
serra, do mar que foi nosso, tu estás lá, eu estou lá. Existimos sem esforço,
eu e tu somos a seiva que dá vida, a força que anima as ondas do mar, as gotas
de chuva que lavam os chãos, o vento e o sol. Sim, partimos, mas ficou o nosso
sentir a fecundar este lugar onde fomos tão felizes, a impulsionar as correntes
das águas que correm loucas, quão louco era o nosso amor, doces, tão doces
quanto a ternura infinita com que apertávamos as mãos, sempre entrelaçadas,
porque enredadas num infinito bem-querer.
Os teus cabelos morenos, que eu
percorria lentamente entre os meus dedos, hoje estarão grisalhos. Os teus olhos
esverdeados de fundo de mar, que se fundiam no castanho das minhas pupilas,
qual espelho da minha alma, hoje estarão cansados. Eu já não tenho o fulgor que
te enlouquecia e enternecia, mas – sabes? – Sinto-te perto. Este sol que ora me
afaga é o mesmo que um dia nos aqueceu. Estás aí, meu amor?
E cavalga no vento essa
pergunta, que é estranha. Ou, afinal, o não será, porque de partidas e
regressos se entreteceram nossas vidas, pelas paisagens que juntos palmilhámos…
Alentejo multicolor num Abril florido, Algarves quentes, Trás-os-Montes agreste
e frio…
Estou aqui, claro!
Caminhadas que fizemos – e que
ora, tantos anos passados, apetece de novo fazer, acariciando-te também eu os longos
cabelos pretos!... Vamos viver outra vez! Agarrando sofregamente cada minuto.
Não, não queremos olhar para o relógio – que, desta feita, não há relógios para
nós, não há pressas, e o melro, ali, saúda o amanhecer, num chilreio, e eu
quero voltar a amanhecer sempre contigo!...
Anabela Guimarães
José D’Encarnação
Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/