quinta-feira, 10 de maio de 2012

Regresso ao interior


O impulso que me fez transpor a barreira do tempo da minha inquietação ainda estou para descobrir. Lembras-te? Não sei se algum dia regressas, regressaste, regressarás… Mas os caminhos que um dia percorri hoje raiaram como um nascer do sol.

Uma brisa. Um barco no horizonte. Uma gota de chuva.
Um voo. O silêncio de uma melodia. Shiuu…

Sim, nasci na Serra, envolto em amendoeiras por florir. Havia um perfume no ar, um cheiro a terra humedecida pelos borrifos da cacimba, a que se adicionaram lágrimas de contentamento.
Por aí voltei, pela quentura dos Verões – e não te encontrei. Só me lembro dos campos, da ceifa, de uma noite a dormir ao luar na eira… Mas tu não estavas lá.

Também te não vi ao instalar-me junto à costa, cheiro a maresia, arrulhar bonito das ondas umas a beijar as outras. Os beijos não eram meus. Os barcos que, sentado no areal, via passar ao longe, pontos negros de uma rota para mim inteiramente desconhecida, também só me faziam sonhar… Eras, vagamente, de longos cabelos lisos a emoldurarem-te o rosto, olhos castanho-escuros, meigos, naquele enorme desejo de partilha…
Longa foi a travessia do deserto – porque, embora litoral, nada havia tão quente e fecundo e terno como o interior. O interior nosso. O interior de um país por explorar. Regressei. Foi aí, afinal, que ora te descobri.
E há um sol escondido neste céu bem cinzento; mas eu sei que ele está lá, pronto a aquecer. A aquecer-nos!

Ouves? Escuta a suave brisa que refresca os meus cabelos. Baila na minha cabeça a música do nosso sentir, aquele sentir que nos atraía irremediavelmente para os nossos braços, oh, os nossos abraços... Lembras-te? Os teus braços eram meus, os meus teus, a minha cabeça no teu ombro sonhava, voava, a tua no meu embriagada na minha pele, os meus braços enrolados no teu corpo apertavam, apertavam… Os teus, qual corrente macia, aprisionavam-me numa doçura sem fim e assim, só assim, ficávamos segundos, minutos, tempos sem fim... No interior nosso. Tão nosso.

Nunca te disse, mas vou dizer-to agora. A vida que vivemos, o tempo que partilhamos, as emoções que experimentamos não é passado, nunca. O nosso tempo é um verbo que eu conjugo no presente e no futuro, porque é a taça que o meu coração ergue, glória merecida, porque não esquecida.
Não, não fiquei triste quando partimos. Por isso não te esqueci. Por isso, neste relembrar das árvores da serra, do mar que foi nosso, tu estás lá, eu estou lá. Existimos sem esforço, eu e tu somos a seiva que dá vida, a força que anima as ondas do mar, as gotas de chuva que lavam os chãos, o vento e o sol. Sim, partimos, mas ficou o nosso sentir a fecundar este lugar onde fomos tão felizes, a impulsionar as correntes das águas que correm loucas, quão louco era o nosso amor, doces, tão doces quanto a ternura infinita com que apertávamos as mãos, sempre entrelaçadas, porque enredadas num infinito bem-querer.

Os teus cabelos morenos, que eu percorria lentamente entre os meus dedos, hoje estarão grisalhos. Os teus olhos esverdeados de fundo de mar, que se fundiam no castanho das minhas pupilas, qual espelho da minha alma, hoje estarão cansados. Eu já não tenho o fulgor que te enlouquecia e enternecia, mas – sabes? – Sinto-te perto. Este sol que ora me afaga é o mesmo que um dia nos aqueceu. Estás aí, meu amor?
E cavalga no vento essa pergunta, que é estranha. Ou, afinal, o não será, porque de partidas e regressos se entreteceram nossas vidas, pelas paisagens que juntos palmilhámos… Alentejo multicolor num Abril florido, Algarves quentes, Trás-os-Montes agreste e frio…

Estou aqui, claro!
Caminhadas que fizemos – e que ora, tantos anos passados, apetece de novo fazer, acariciando-te também eu os longos cabelos pretos!... Vamos viver outra vez! Agarrando sofregamente cada minuto. Não, não queremos olhar para o relógio – que, desta feita, não há relógios para nós, não há pressas, e o melro, ali, saúda o amanhecer, num chilreio, e eu quero voltar a amanhecer sempre contigo!...

Anabela Guimarães
José D’Encarnação


Publicado in Jornal Renascimento e http://www.eacfacfil.net/

7 comentários:

  1. Este texto foi escrito a quatro mãos e a honra foi-me dada pelo Prof. Doutor José D' Encarnação, meu ilustre "colega" de página de Artes e Cultura do Jornal Renascimento.

    Foi uma experiência inédita e apaixonante que não vou esquecer. Foi feito com uma grande sintonia e motivação, proporcionadas pela sua escrita límpida e inspiradora.

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  2. Estranhar-se-á, porventura, sermos os autores a comentar; contudo, perante o depoimento da Anabela, não posso deixar de manifestar quanto me foi agradável e surpreendente a experiência, justamente pela facilidade e fluência do diálogo conseguidas em grande sintonia, como se para ambos fosse algo de habitual, quando o 'habitual' era tão simplesmente estarmos lado a lado na página do 'Renascimento'!... Espero que para os leitores também tenha sido - e seja! - aprazível assim comungarem connosco!

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  3. E ficou lindo, Anabela! Os leitores vão se deliciar com tanta ternura.

    E que não haja "pressas" no amanhecer.

    Abraços do lado de cá do mar.

    Mila Reis

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  4. Mila, disse a palavra-chave: ternura. É deste sentimento que o texto respira...

    Um abraço enorme para si e outro para o co-autor, com muita ternura, mesmo;)

    Anabela G.

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  5. Sim,que a ternura continue...

    Parabéns aos autores.

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  6. Este texto poético merece-me alguns comentários cujas palavras são parcas para transmitir as emoções que me desperta!
    Resume-se a sentir um arrepio na pele na nostalgia de algo que já não volta, misturada com uma imensa sensação de amor, ternura e saudade pelo que virá e que aos nossos olhos já tão breve parece. Gostei muito! Parabéns! Ana Resende

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  7. Ana Resende, as suas palavras enchem-me de alegria;)citando o comentário anterior, "que a ternura continue..."...

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