quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O Carteiro de Pablo Neruda, ou as metáforas da paixão

O Carteiro de Pablo Neruda, ou as metáforas da paixão

Recentemente reli O Carteiro de Pablo Neruda, de António de Skármeta. É um livro a que regresso algumas vezes pela emoção e poesia que emana, pela humildade e grandeza das suas principais personagens, Mário e Pablo, um carteiro porque não queria ser pescador e um poeta que não podia ser livre. O livro foi mais tarde adaptado ao cinema, num filme belíssimo, com o mesmo nome em Portugal, realizado por Michael Radford e onde Massimo Troisi interpreta o último papel da sua vida, o inesquecível Mário, com tal intensidade e dedicação que, indiferente aos conselhos médicos, morre dias depois de acabadas as filmagens. O filme foi um sucesso de bilheteira, candidato a vários Óscares e vencedor da melhor banda sonora, com algumas diferenças em relação ao livro (uma delas é o final), mas um filme de culto, belo e encantador, aliás como o livro, sem dúvida um dos filmes da minha vida (existe em DVD, da Miramax).
Uma vida simples, pobre, um desejo de contrariar um destino obscuro e sem futuro, igual ao do pai e das gentes que o rodeiam, mas uma capacidade surpreendente de olhar com os olhos e a alma, tanto as coisas simples que o envolvem, como o amor de uma mulher ou as frases enigmáticas de um poeta. Mário o improvisado poeta de uma pequena ilha pobre, mas encantadora, onde o famoso poeta Pablo Neruda se acolhe, obrigado a um exílio que não escolheu, é a personagem fascinante que nos acompanha do princípio ao fim desta aventura. Capaz de nos fazer sorrir na sua ingénua pureza, leva-nos por outro lado às lágrimas, com o seu trágico destino no final.
Mário começa por descobrir nos versos de Neruda, o que o faz famoso. E descobre um mundo novo, recheado de palavras bonitas mas também incompreensíveis, a que a curiosidade e sensibilidade de Mário não resiste.
Ao confrontar o poeta com as suas dúvidas, Mário não entende. São metáforas, esclarece o Mestre. Metáforas? Com paciência, o poeta confronta o carteiro com uma comparação, propondo-lhe um simples exercício. Se ele disser que o céu chora, o que quer significar com isso? Mário não hesita. Chove, pois claro. E está claro que Mário é um poeta. Um poeta da vida, sem conhecimento que suporte a sua vontade de criar, mas com uma sensibilidade que o leva a assimilar os ensinamentos de Neruda e a criar, isso sim, momentos únicos de poesia pura.
E no momento da criação da sua primeira metáfora, Mário recusa-se a aceitar que a criou, simplesmente porque foi involuntariamente, logo “não vale”. O poeta apressa-se a elucidá-lo que isso (a intenção), não era o mais importante, o mais importante era o aparecimento das imagens que deram origem à metáfora. Então o Mundo todo é metáfora de alguma coisa? Mário interroga-se, surpreendido.
 Neruda diz a Mário que o poeta precisa conhecer o seu objecto de inspiração, não pode escrever algo do nada, quando este lhe pede para fazer um poema dedicado ao seu amor, Beatriz Russo. O poeta necessita algo mais do que construir frases, para a criação de metáforas, precisa de sentir… mas isso não é problema para o carteiro, ele só sente….
Mas a capacidade criação de metáforas de Mário, que parte apenas de símbolos, aumentou a sua linguagem, o seu pensamento, alterou o rumo da sua própria vida.
Com Beatriz, Mário fez metáforas, símbolos, amor e Pablito. O coração de Pablito… metáfora maior de uma vida recheada de significados.
E Neruda? Da vida de um simples carteiro, humilde e quase analfabeto, um poeta aprende uma grande lição de vida. Existirá melhor metáfora que esta? A emoção de Mário em criar poemas é recordada por Neruda, mais tarde em Paris, enquanto ouve o azul intenso das águas da ilha, que Mário lhe enviou e gravou num japonesíssimo Sony:
Número um – Ondas em Calli Sotto. Pequenas.
Número dois – Ondas grandes.
The end: Poesia… no seu estádio líquido.


Anabela G.
In Jornal Renascimento, 15 de Abril de 2010 e http://www.eacfacfil.net/

2 comentários:

  1. Não posso deixar de comentar porque adorei este livro. É maravilhoso pensar como a simplicidade é verdadeira poesia.

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  2. Sim, Jo, é verdade... este é um dos livros da minha vida, como se costuma dizer. Aqui a prosa transpira poesia, sente-se a sua presença em toda a história...

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